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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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terça-feira, 21 de janeiro de 2025

O que dizem os poetas sobre o nosso tempo

É bom ler os historiadores para termos uma noção mais matizada da política do nosso tempo, com as seus problemas, os seus dilemas, as suas soluções, os seus perigos, as suas potencialidades. Mas para compreender as mentalidades de hoje não há como ler os poetas doutros tempos. Não é por acaso que "The Second Coming," um poema de 1919 de William Butler Yeats, aparece hoje com uma frequência inusitada em tudo o que é ensaio, crónica ou conversa. É porque também hoje temos a sensação difusa de que tudo se desmorona, que o centro não se sustem, que uma "mera anarquia" está à solta no mundo, e nos interrogamos sobre que "besta grosseira," chegada enfim a sua hora, se arrasta pelo deserto para nascer em Belém.

A "besta grosseira" é uma hidra: já o era no tempo de Yeats. O poeta não tinha como prever o fascismo e o nazismo, mas comprendeu o ar dos tempos como talvez só os grandes poetas sejam capazes de o compreender.

O mundo estava muito mal em 1919, como está hoje: nihilista, desencantado, sem esperança, com os melhores tolhidos pela apatia e os piores activos e convictos no frenesim das suas paixões. Estava muito mal; mas o pior ainda estava para vir.  

Há de melhorar, sem dúvida, no longo prazo. Por muito que muitos digam que dantes é que era bom, isto raramente é o caso.  Para os velhos o tempo da sua juventude era melhor por uma variedade de razões: eram mais fortes, mais saudáveis, mais activos, mais ágeis, e é próprio do ser humano esquecer mais facilmente a infelicidade do que a felicidade. 

O que os velhos sentem hoje é o que os velhos sempre sentiram, e é o que os jovens também sentirão quando forem velhos. Mas é, objectivamente, uma percepção falsa: o progresso é uma realidade; e, por qualquer parâmetro que possa ser quantificado, o mundo em que vivemos é muito melhor do que aquele em que vivia Yeats.  Já não é normal nem aceite, no mundo desenvolvido, que uma criança morra de sarampo, varíola ou tosse convulsa, ou fique paralítica por ter contraído poliomielite. Já não é normal nem aceite que uma mulher morra no parto. Já não é normal nem aceite que um jovem de 30 anos morra de tuberculose. Já não é normal nem aceite que uma mulher precise da autorização de um homem para sair do país. Já não é natural nem aceite, mesmo nos países mais pobres e mais mal governados, que morram tantas pessoas assassinadas ou em guerras como morriam há 50 anos.

O progresso é uma realidade, mas não é linear. Entre 1919 e 1950 as coisas melhoraram muito, mas antes de melhorarem pioraram para níveis que Yeats acharia inconcebíveis. A besta também era uma realidade; conseguiu realmente "chegar a Belém" para nascer. E houve Auschwitz, e houve a "solução final," e houve milhões de mortos, e houve Hiroshima e Nagasaki.

E portanto, mesmo que acreditemos que o mundo há de melhorar, temos de nos perguntar: e antes de melhorar? Terá de piorar? E se piorar, como tudo indica, até que ponto? Hoje estão a morrer centenas de milhares: terão ainda de morrer milhões, ou dezenas de milhões?

Alguém disse que a História não se repete, mas rima. A ser assim, o que vem aí não é uma repetição do nazismo. Mas com que rimará o nazismo? Com aquilo a que eu em tempos chamava "fascismo de empresa," e mais tarde "neo-feudalismo?" Com aquilo a que duas personagens como Steve Bannon e Yannis Varoufakis, nos dois extremos do espectro político, chamam "tecno-feudalismo?"Com o "transaccionalismo" de que fala Timothy Garton Ash, um mundo em que todas as alianças serão de circunstância e nenhuma será incondicional?  

Desde que não nos tolha a apatia, como no poema de Yeats; e desde que saibamos opor à "convicção apaixonada" dos piores a convicção serena de que os melhores são capazes.

A Besta vem aí. Sente-se, cada vez mais forte, o tremor dos seus passos. Mas ainda não lhe vimos o rosto. Não será o rosto de Hitler, com certeza, mas será o de Elon Musk? O de Peter Thiel? Ou o de alguém que ainda nem sequer apareceu no espaço público? E será, na sua nova incarnação, menos maligna do que na anterior? Ou ainda mais maligna? 

Não sabemos. Para usar as palavras de Matthew Arnold, outro poeta que via o mundo a desmoronar-se,  

"... we are here as on a darkling plain 

Swept with confused alarms of struggle and flight, 

Where ignorant armies clash by night."

Resta-nos a esperança. Não o optimismo cego, nem o pessimismo cego, mas essa coisa bem mais modesta e frágil de que falou Emily Dickinson:

"... the thing with feathers that perches in the soul

and sings the tunes without the words

and never stops at all.''

Desde que não nos tolha a apatia, como no poema de Yeats; e desde que saibamos opor à "convicção apaixonada" dos piores a convicção serena de que os melhores são capazes.

sábado, 11 de junho de 2022

WHY NATIONS FAIL


O livro é de de 2012 e parecerá datado a quem ler a introdução, que menciona a a Primavera Árabe quando esta estava, sabêmo-lo hoje, votada ao fracasso. Mas a tese central continua convincente: a pobreza das nações não é causada pela geografia, nem pela composição genética dos seus habitantes, nem por factores culturais como a ideologia ou a religião, mas sim pelo maior ou menor défice democrático e pelo nível de corrupção. Os exemplos são abundantes e a argumentação sólida. A corrupção é o mais oneroso dos impostos, e também o mais insidioso, porque não inside sobre os rendimentos e a riqueza que temos mas sobre a que teríamos sem ela. E é também o mais injusto, porque se recolhemos alguns benefícios em trocva dos impostos que pagamos ao Estado, não recebemos nada pelo tributo que pagamos às oligarquias.

terça-feira, 24 de maio de 2022

AINDA "THE MINISTRY FOR THE FUTURE"


"O Paradoxo de Jevons propõe que um aumento de eficiência no uso dum recurso leva  a um aumento no agregado do uso desse recurso, e não a uma diminuição. William Stanley Jevons, escrevendo em 1865, tinha em mente a história do uso do carvão; depois da introdução da máquina de Watt, que aumentou muito a eficiência do uso do carvão como fonte de energia, o uso do carvão cresceu muito para lá da redução inicial da quantidade necessária à actividade anterior a este melhoramento.

O efeito de ressalto deste paradoxo só pode ser mitigado pela introdução de factores adicionais ao método mais eficiente, tais como a obrigação legal de reinvestir, os impostos e a regulação. É o que dizem os economistas.

O paradoxo é visível na história de todas as espécies de desenvolvimentos tecnológicos. Menos litros de gasolina por quilómetro dão lugar a mais quilómetros percorridos. Computadores mais rápidos, mais tempo passado em frente ao computador. Etc. e etc. até ao infinito. Sabendo isto, é ingénuo esperar que os avanços tecnológicos possam por si sós reduzir os impactos do crescimento e reduzir a carga sobre a biosfera. E contudo muitos de nós ainda exibimos esta ingenuidade.

Associada a esta lacuna no pensamento corrente, talvez uma generalização do seu foco particular, é o pressuposto de que a eficiência é sempre boa. É claro que a eficiência como medida foi construída para descrever resultados considerados bons a priori, e portanto é quase uma tautologia, mas as duas coisas podem ser destrinçadas, pois não são exactamente iguais. Um exame dos registos históricos, ou uma reductio ad absurdum como "A Modest Proposal" de Jonathan Swift, deviam tornar óbvio que a eficiência pode ser uma coisa má para os seres humanos. O Paradoxo de Jevons também se aplica aqui, mas a ci~encia económica não tem sido normalmente flexível que chegue para ter em conta esta verdade óbvia, e é muito frequente ver textos de economia em que a eficiência é referida como boa por definição, e "ineficiente" como um simples sinónimo de "mau" ou "mal feito." Mas a evidência mostra que há boa eficiência e má eficiência, boa ineficiência e má ineficiência. Exemplos destas quatro situações podem ser facilmente apresentados, embora aqui deixemos isto como um exercício para o leitor, apenas com estas simples pistas para estimular a reflecção: a medicina preventiva poupa verbas enormes em cuidados médicos posteriores, e é uma boa eficiência. Comer os bebés em excesso (é esta a "modesta proposta" da personagem de Swift) seria uma má eficiência. Tudo o que cause dano às pessoas para obter lucro é igualmente mau, por mais eficiente que seja. Usar um veículo grande e pesado demais para ir do ponto A ao ponto B é uma má ineficiência, e há muitas assim; mas os meandros dum rio, irrigando uma grande planície fértil, são uma boa ineficiência. E assim por diante, e assim por diante; todas as quatro categorias precisam de ser tidas mais em conta se a análise da situação mais geral tiver como objectivo algo de desejável.

O princípio orientador que poderia guiar esta forma de pensamento é muitas vezes omitido, mas devia por certo ser incluído e explicitado: devíamos fazer tudo para evitar uma extinção em massa. Isto sugere um princípio operativo geral semelhante à ética da terra leopoldiana, muitas vezes resumida como "o que é bom é o que é bom para a terra." Na nossa situação presente, a frase podia ser reformulada como "o que é bom é o que é bom para a biosfera." À luz deste princípio, depressa se verifica que muitas eficiências são profundamente destrutivas, e muitas ineficiências podem hoje ser vistas como involuntariamente salvadoras. A robustez e a resiliência são geralmente ineficientes; mas são robustas, são resilientes. Precisamos de chegar aqui intencionalmente.

Toda a disciplina da Economia, pela qual planeanos e justificamos o que fazemos enquanto sociedade, está simplesmente infestada de ausências, contradições, falhas lógicas e, pior que tudo, falsos axiomas e falsos objectivos. Temos de corrigir isto se pudermos. Precisaríamos de ir muito fundo e reestruturar todo esse campo do saber. Se a Economia é um método para optimizar várias funções objectivas sujeitas a constrangimentos, então o foco da mudança devia consistir num re-exame dessas "funções objectivas." Não o lucro, mas a saúde da biosfera, devia ser a função resultante; e isto mudaria muitas coisas. Porque é que fazemos o que fazemos? O que é que queremos realmente? O que é que seria justo? Como podemos gerir melhor as nossas vidas neste planeta?

A ciência económica actual ainda não respondeu a nenhuma destas questões. Mas porque havia de responder? Pergunto à minha máquina de calcular o que devo fazer com a minha vida? Não pergunto. tenho de resolver por mim próprio este problema."  

domingo, 22 de maio de 2022

Monstros

 Vivemos num mundo e num tempo de monstros. Não é que seja o pior dos mundos - houve-os tão maus ou piores - mas é certamente um mundo em que a notícia do pior nos chega facilmente. É um mundo em que a ficção tem dificuldade em competir no horror com o reality show que nos é oferecido diariamente pelos media; e todos viajamos ao coração das trevas sem precisar de literatura. 

Ou será que precisamos? Os livros e os filmes de horror não me interessam quando postulam o sobrenatural: é uma solução de facilidade que não me ensina nada. Mas há - ainda há - a literatura policial. O romance policial parece incapaz de acrescentar horror ao horror, e sê-lo-ia de facto se o horror não se tivesse transformado em espectáculo. Mas os melhores romances policiais podem, como a poesia, devolver a realidade ao real.

O Comissário Brunetti de Donna Leon é um homem decente. Tem uma família a que é dedicado. Os filhos adolescentes procuram viver eticamente num mundo que pouco se rege pela ética. No seu local de trabalho, a Questura de Veneza, há gente corrupta, semi-corrupta ou, como ele, tão decente quanto a decência cabe nos limites do possível. Ainda que nem sempre caiba.

Este é o pano de fundo: Veneza, e o que nela sobrevive de boa vizinhança; Brunetti; a sua família, amigos e colegas; o pequeno comércio, o restaurante sem turistas, o bar da esquina. É contra este pano de fundo que se destaca o horror: e é por vezes um horror sem nome, um horror que o Código Penal não prevê nem pode punir. E que não cabe numa notícia de jornal, porque tem de ser explicado desde a raiz e esta está por vezes muito funda. Como no livro da imagem.

A ficção não é o oposto da realidade. Nem cabe numa escala de factualidade entre a verdade e a mentira. No seu melhor será, se assim quisermos dizer, a verdade possível quando a verdade factual nos ilude. E a esta verdade chamo eu poesia.  

sábado, 21 de maio de 2022

COMO SALVAR O PLANETA


 "Hoje estamos aqui para indagar quem realmente põe em prática a economia mundial - quem são as pessoas que a movem, por assim dizer. Provavelmente estas pessoas constituem uma minoria, já que há quem diga que a maior parte das pessoas hoje vivas dariam activamente as boas-vindas a uma mudança no sistema.

Só uma pessoa estúpida diria isso.

Bem, e contudo eu disse-o ainda agora.

Sim.

Mas para voltar à questão, quem pensamos nós que realmente põe em acção o mercado enquanto tal? Pelo que quero dizer, quem o teoriza, quem o implementa, quem o administra, quem o defende?

A polícia. No sentido da lei.

Então nesse caso podemos assumir que as pessoas que fazem as leis estão profundamente implicadas?

Sim.

Mas os legisladores são muitas vezes eles próprios juristas, notoriamente desprovidos de ideias. Podemos assumir que recebem doutros as suas ideias sobre as leis?

Sim.

E quem são alguns desses outros?

Think tanks. Académicos. 

O que quer dizer professores de economia e gestão.

Toda a espécie de professores. E muito rapidamente os seus estudantes.

Faculdades de Economia, quer dizer.

A Organização Mundial do Comércio. Os mercados accionistas. Todas as leis, e os políticos e os burocratas que administram as leis. E a polícia e as forças armadas que as fazem cumprir.

E suponho que os CEOs de todas as empresas.

Bancos. Associações de accionistas, fundos de pensões, accionistas individuais, fundos de investimento, firmas financeiras.

Podem os bancos centrais ser realmente centrais nisto tudo?

Sim.

Mais alguém?

Companhias de seguros, companhias de resseguros. Grandes investidores.

E os seus algoritmos, certo? E portanto os matemáticos?

A matemática é primitiva.

E contudo são precisos matemáticos até para a matemática primitiva, uma vez que nós outros somos tão ignorantes.

Sim.

E também, suponho, os próprios preços, e as taxas de juro e coisas assim. O que é o mesmo que dizer o próprio sistema.

Estavas a perguntar sobre as pessoas e as suas acções.

Sim, mas é uma rede de actores. Alguns dos actores numa rede de actores não são humanos.

Treta.

O quê, não acreditas em redes de actores?

As redes de actores existem, mas são os actores dotados de agência que podem escolher fazer as coisas doutra maneira. E era disto que estavas a tentar falar.

Certo, mas então o dinheiro?

O quê, o dinheiro?

Para mim, o dinheiro actua como a gravidade - quanto mais se acumula, mais poder de acumulação existe, como com a matéria e a sua atracção gravitacional.

Giro.

Em última análise é um sistema enorme e articulado!

Perspicaz da tua parte.

Certo, então, voltemos aos que administram o nosso sistema económico enquanto tal, e ensinam os outros a trabalhar com ele, e por uma coincidência nem por isso coincidente beneficiam mais dele. Pergunto-me quantas acabam por ser essas pessoas?

Cerca de oito milhões.

Tens a certeza?

Não.

Então seria uma pessoa em cada mil das que estão vivas hoje.

Boa.

Obrigado! E os programas que elas escreveram.

Cinge-te às pessoas.

Mas se os elementos não humanos do sistema deixassem de funcionar?

Cinge-te às pessoas. Estavas quase a tornar-te interessante.

Quem é mais importante nesse grupo de oito milhões?

Os legisladores do Estado.

É um pensamento desagradável.

Não, não é. Porque dizes isso?

Corrupção, estupidez -

Estado de Direito.

Mas -

Nem mas nem meio mas. Estado de Direito.

Que palhinha tão frágil para nos agarrarmos!

Sim.

O que podemos fazer quanto a isso?

Obrigá-lo a funcionar."


sexta-feira, 5 de junho de 2020

Peer Gynt

As suites Peer Gynt 1 e 2 de Edvard Grieg são habitualmente gravadas em versão instrumental. Versões vocais como esta são menos comuns. 

No quarto andamento da suite nº 1, Na Corte do Rei da Montanha, intervem o Conjunto Vocal Gösta Olin e o Coro de Câmara Pro Musica. No segundo andamento da suite nº 2, Dança Árabe, intervêm estas formações juntamente com a mezzo-soprano Marianne Eklöf. No quarto andamento, a conhecidíssima Canção de Solveig é mesmo uma canção e tem como intérprete a soprano Barbara Bonney. 

A orquestra é a Sinfónica de Goteburgo sob a direcção de Neeme Järvi.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Traduções

Nunca percebi muito bem que mosca terá mordido a Eça de Queirós para traduzir As Minas de Salomão (produzindo, como que por acidente, um texto melhor que o original). Apertos financeiros, arrisco. Já não me custa a entender que Aquilino Ribeiro tenha querido traduzir o D. Quixote, embora ainda me esteja entalado na garganta aquele "cujo nome vos direi amanhã."

O que acho delicioso é que Fernando Pessoa tenha traduzido The Scarlet Letter. Traduzindo "scarlet", como bom lisboeta, por "encarnada" e não, como mau literato que não era, por "escarlate." São coisas que consolam um bocadinho em tempos de confinamento. 

domingo, 31 de maio de 2020

Why Brownlee Left


Why Brownlee left, and where he went,
Is a mystery even now.
For if a man should have been content
It was him; two acres of barley,
One of potatoes, four bullocks,
A milker, a slated farmhouse.
He was last seen going out to plough
On a March morning, bright and early.

By noon Brownlee was famous;
They had found all abandoned, with
The last rig unbroken, his pair of black
Horses, like man and wife,
Shifting their weight from foot to
Foot, and gazing into the future.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

David Graeber, 'Debt: The First 5,000 Years'

Se há uma pergunta na ciência económica para a qual toda a gente pensa que tem uma resposta óbvia, é esta: "O que é o dinheiro?" E quanto menos sabemos o que é o dinheiro mais pensamos que sabemos. Quem sabe, porém, sabe sobretudo que não sabe. A natureza do "dinheiro" (como a de "riqueza", que não é a mesma) é uma das questões mais intratáveis e complexas no debate entre economistas; e já esteve na raiz de não poucas guerras, e das mais mortíferas.

Há hipóteses mais plausíveis do que outras. Uma delas, bastante consensual, é que a definição de "dinheiro" está ligada à de "dívida." Isto, numa primeira abordagem, parece óbvio: se forneço a alguém um bem ou serviço e recebo em troca um papel que não serve para nada a não ser para obter outro bem ou serviço, então o que tenho em meu poder não é em si mesmo riqueza, mas apenas o título de uma dívida em que estou na posição de credor.

Mas não há consenso sobre todos os eixos de articulação entre o dinheiro e a dívida. Pior: também não há consenso sobre uma definição exacta de "dívida" nem sobre uma definição exacta de "riqueza." Sabemos que as três noções não são sinónimas, presumimos fundamentadamente que estão ligadas, mas não sabemos exactamente como estão ligadas.

Para discutir estas matérias, David Graeber recua 5.000 anos até à Idade do Bronze e viaja por toda a Terra, examinando as mais diversas formas de organização social e económica que os historiadores, os sociólogos e os antropólogos têm estudado. E centra-se na noção de "dívida", provavelmente aquela que se presta a uma definição mais plausível. "Dívida" será então a obrigação - moral, religiosa, legal, ritual - de compensar um benefício recebido mediante uma contrapartida. Sendo que nem o benefício nem a contrapartida são necessariamente objectivos ou facilmente quantificáveis.

Juntamente com mais duas ou três obras canónicas (não serão muitas mais), 'Debt' obriga-nos a pensar por fora das vulgatas cássica e marxista sem por isso termos que renunciar ao que há de mais frutífero nas respectivas teorias. E obriga-nos a dar pelo menos o benefício da dúvida às tão negligenciadas abordagens anarquistas da economia, da sociologia e da história.

Da última vez que procurei, este livro não tinha sido editado em português. Havia outros do mesmo autor, porventura menos importantes; fica a hipótese de os editores portugueses se terem assustado com a extensão do texto. Entretanto pode ser que já tenha sido publicada uma tradução em português. É uma leitura que se recomenda, quando mais não seja para evitarmos pronunciamentos taxativos sobre noções como dívida privada e dívida pública e sobre as implicações políticas e estratégicas do que sabemos, ou julgamos saber, sobre a matéria.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Aldous Huxley, Point Counter Point

Quando participei num desafio em que era convidado a publicar no Facebook as capas de dez livros que me tivessem marcado, um dos títulos em que pensei foi 'Nineteen Eighty-Four' de George Orwell. E como este livro é frequentemente emparelhado com a distopia de Aldous Huxley 'Brave New World', pensei em incluir este título na lista.

Não o fiz, porém. É certo que Nineteen Eighty-Four' me marcou, é igualmente certo que 'Brave New World' também, e que a conjunção ou oposição das duas distopias me marcaram ainda mais. Nenhuma das duas me serviu de grelha de leitura única para compreender o meu tempo porque - lá está -existia também a outra.

Mas a obra mais ambiciosa de Huxley é 'Point Counter Point', e marcou-me mais do que me pareceu à primeira leitura. O romance foi publicado em 1928 e grande parte das suas personagens podem ter sido inspiradas em contemporâneos de Huxley. O mundo em que a acção decorre é o das elites artísticas, jornalísticas, literárias e científicas da época. E políticas, também: o líder fascista Edward Webley chefia um movimento que é, na Europa dos finais dos anos Vinte, perfeitamente respeitável.

Porquê falar deste romance e não de outro mais imediatamente relevante - como 'Brave New World' - para as perplexidades da era em que vivemos hoje? Em parte porque os pares de opostos que determinam a organização do texto - natureza e artifício, racionalidade e intuição, espectáculo e acção, ponto e contraponto - continuam a ser úteis para podemos ler o nosso tempo. Mas principalmente porque se trata, não de um panfleto nem de um 'roman à clef', mas de literatura. O autor não ignora a economia, a política ou a história - se as ignorasse nem literatura seria capaz de fazer - e não se abstém, longe disso, de produzir crítica social. Produz esta crítica de um ponto de vista que não é o do seu contemporâneo D.H. Lawrence; mas, ao retratar Lawrence na personagem Mark Rampion, e dando-lhe amplamente voz, cria o contraponto crítico para o seu ponto. Já é obra de monta.