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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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segunda-feira, 30 de julho de 2007

Duas Culturas

(Publicado em Junho de 2005 no meu blogue Leviathan, agora extinto)

Como os americanos já perceberam e os europeus começam a perceber, o Ocidente está neste momento em plena guerra civil.

Quem são os contendores? Em números, temos metade da população dos EUA e dois terços da população da Europa contra a outra metade da América e o terço restante da Europa. Mas a força não está só nos números, nem estes números nos dizem nada sobre os interesses em jogo.

Tratar-se-á da velha luta de classes, que por mais que a neguem se recusa a morrer? Em parte; mas cada um dos lados conta com a sua parte de burgueses e com a sua parte de trabalhadores.

Duas filosofias, duas religiões, duas ideologias? Em nenhum dos dois lados encontramos a coerência duma filosofia, nem a duma religião. E mesmo as ideologias, menos coerentes do que as filosofias ou as religiões, são ainda assim coerentes demais para definirem a heterogeneidade dos dois campos.

Nem se trata, rigorosamente, de liberais contra estatistas. Um dos lados tem o liberalismo económico como bandeira de conveniência, mas raramente como prática sistemática; enquanto o outro, tendo como bandeira o combate ao neo-liberalismo, ao capitalismo selvagem e à globalização sem regras, inclui nas suas fileiras liberais bem mais consistentes e radicais do que os arautos do liberalismo económico.

Direi que são duas culturas. Uma cultura pode ser diversa, contraditória, e mesmo incoerente - como o são os dois lados nesta guerra - e mesmo assim ter uma identidade própria que a distingue das outras. Chamarei a estas culturas, arbitrariamente, Direita e Esquerda. Confessarei que me situo na da Esquerda, para que não me acusem de me querer situar, olimpicamente, acima desta querela.

Nesta guerra, como em todas, há questões pacíficas. Os liberais - que, não sendo nem por sombras toda a Direita, são a parte da Direita que neste momento tem a palavra - lá vão reconhecendo, com relutância, a necessidade da existência do Estado; e os críticos do liberalismo reconhecem as leis do Mercado como um dado objectivo da realidade, como reconhecem a lei da gravidade. Mas é claro que num debate o que interessa não são as questões pacíficas, e muito menos numa guerra.

Os verdadeiros pontos de discórdia entre Direita e Esquerda não estão na necessidade de haver Estado nem na necessidade de ter em conta as leis do Mercado. Estão muito a montante disto. Começam pela questão de saber como se devem ter em conta as leis do mercado: nós, à esquerda, pensamos que temos que as conhecer para melhor manipular a realidade de acordo com os desejos humanos; a Direita pensa que temos que as respeitar, como os primitivos respeitavam as trovoadas, para não atrairmos sobre nós a iras dos deuses.

Quanto à lei da gravidade todos estão de acordo: não é preciso deixá-la funcionar, ela funciona sempre, e não constitui sacrilégio termos aviões, pára-quedas e parapeitos nas varandas. Mas a Direita pensa que as leis do mercado precisam de sacrifícios humanos para continuarem a funcionar. Dizem mesmo que isto é que é racional. Trata-se aqui de pensamento racional contra pensamento mágico, com efeito, mas a racionalidade não está à Direita.

Nas premissas, discordamos da Direita em tudo. Discordamos da Direita no conceito de riqueza, no conceito de utilidade, no conceito de eficácia, no conceito de mérito, no conceito de bem comum. O «pensamento único» da Direita consiste nisto: em dar por adquiridos os seus pressupostos no que diz respeito a estas coisas e em só debater a partir daqui.

Não percebemos muito bem a distinção que a Direita faz entre «gerar» riqueza, «produzir» riqueza e «criar» riqueza. Do mesmo modo a Direita não percebe, ou não quer perceber, a distinção que nós fazemos entre produzir riqueza e adquirir riqueza.

Discordamos, sobretudo, quanto à definição de «futuro». Para nós o futuro começa no próximo segundo, e já a partir do próximo segundo todos os futuros são possíveis. A Direita, pelo contrário, confunde o futuro com a sua agenda: por isso só admite um futuro, predeterminado desde o princípio dos tempos pelas leis imutáveis (e sagradas) do Mercado. Estranha ironia: o discurso das inevitabilidades históricas, característico dum certo marxismo mecanicista, foi abandonado pela esquerda e quem o herdou foram os liberais. Por isso, para uma certa direita - como há trinta anos para uma certa esquerda - quem resiste a certas mudanças está a resistir à Mudança; quem recusa certos riscos está a recusar o Risco; e quem propõe outros futuros está a bloquear o Futuro.

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