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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A empresarialização esquizofrénica das escolas

And we are here as on a darkling plain
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night.

Matthew Arnold, "Dover Beach"

O trabalho do professor consiste em compreender o mundo e dá-lo a compreender aos outros. O emprego do professor, ninguém sabe no que consiste: nem o próprio, nem as direcções das escolas, nem os especialistas em Ciências da Educação, nem a ministra. Ninguém.

Sabe-se, sim, aquilo em que o emprego do professor não consiste, pelo menos no chamado mundo ocidental: não consiste, pelos vistos, em fazer o seu trabalho. Talvez isto resulte do facto de este trabalho ser, se considerado em termos absolutos, uma tarefa impossível (como outras tarefas, de resto; vem-me à cabeça, por exemplo, a do tradutor). Ninguém pode compreender inteiramente o mundo nem dá-lo inteiramente a compreender. O êxito em empreendimentos desta natureza, se de êxito se pode falar, não consiste em atingir uma meta estabelecida num prazo, mas em tender sempre, segundo uma curva assimptótica, para um resultado inatingível. Some-se a inevitável impossibilidade do trabalho do professor à futilidade das tarefas que lhe são impostas (ou que ele próprio se impõe) no âmbito de um emprego sem sentido discernível, pô-lo-emos numa situação em que duas das mais importantes realidades da sua vida são incompatíveis entre si.

Desta incompatibilidade entre emprego e trabalho decorrem várias consequências. Desde logo para a saúde mental do professor, que, dividido entre lealdades contraditórias, acaba muitas vezes por fazer da dissociação cognitiva o seu modo habitual de funcionar. Mas também para as escolas, que não sabem por que regras se devem reger, e para o sistema, que não sabe que modelo adoptar para as instituições que lhe compete gerir.

É aqui que entra o modelo empresarial. Erigida em pináculo inultrapassável da organização social, a empresa (ou melhor, o ideal da empresa) vem preencher a brecha criada. E a empresa não tem vocação, nem tempo, nem paciência, para tarefas impossíveis ou para curvas assimptóticas. Se a empresa exprime por vezes em termos que parecem absolutos, é porque teve o cuidado prévio de relativizar esses termos. Assim, a "excelência" não é mais que o resultado da "qualidade total" que a empresa exige a si própria; e a "qualidade", por sua vez, consiste no cumprimento integral dum caderno de encargos.

Não se depreenda do que escrevi acima que a empresa é necessariamente uma entidade racional ou que a escola é necessariamente irracional. Tanto a empresa como a escola necessitam de agir racionalmente em função dos pressupostos metafísicos de que partem. O conflito de culturas entre a escola e a empresa resulta de partirem de pressupostos metafísicos diferentes. Mesmo no caso de ambas estarem de saúde e funcionarem bem (mas neste caso nem uma, nem outra precisaria de seguir "modelos"), este conflito seria inevitável.

Se implantarmos numa escola em crise um modelo empresarial saudável, o modelo será rejeitado na mesma. Mas o que se passa de facto é que o modelo empresarial que se quer implantar nas escolas está ele próprio em crise. Tal como as escolas se debatem com o "eduquês", que é o seu problema principal, também as empresas actuais se debatem com uma mescla irracional de crenças e ideologias, um "empresarialês" que ocupa, nas prateleiras das livrarias, as estantes destinadas às "teorias da gestão" (ou "teorias do management", para os mais puristas). É aqui que pontificam os "gurus" como Tom Peters. A mim, nunca me deixa de divertir o facto de estas estantes estarem, em muitas livrarias, junto das estantes dedicadas às "espiritualidades". Tom Peters e Paulo Coelho têm, de facto, muito em comum. Só faltam, para lhes fazer companhia, pensadores da craveira de Ana Benavente, que por certo se sentiria muito melhor junto deles do que nas proximidades dos manuais escolares que ajudou a perpetrar.

O delírio gestionário que está para as empresas como o delírio pedagógico para as escolas aparece caracterizado e analisado por Thomas Frank, ao longo de 49 páginas brilhantes, no capítulo "Casual Day, USA" do seu livro One Market Under God*. O livro merece ser lido na sua totalidade, mas para um professor este capítulo tem um interesse particular pela semelhança do que nele se descreve com a sua própria experiência. Entre os vários paralelismos que se podem estabelecer, há um que me chamou particularmente a atenção: o facto de ambos os discursos, ou ideologias, ou superstições, ou lá o que lhes queiram chamar, se apropriarem da contra-cultura dos anos 60 do século passado para prosseguir fins que nada têm a ver com ela.

Causa terror a ideia que a autoridade educativa, em Portugal como noutros países, está nas mãos de pessoas sem vestígios de cultura humanística mas com as cabeças formatadas, umas por um delírio gestionário, outras por um delírio pedagógico. Causa terror a ideia que estes delírios podem, em vez de se cancelarem reciprocamente, estabelecer uma sinergia infernal, uma follie à deux em que a loucura de um aumenta e reforça a do outro. Causa terror que seja esta gente a determinar o que é uma escola e para que serve, e a decidir o que é um bom professor e por que critérios deve ser avaliado.


*Frank, Thomas. One Market Under God: extreme capitalism, market populism and the end of economic democracy. Londres: Vintage 2002

1 comentário:

Anónimo disse...

Grande Texto. Um grande blogue que visito regularmente.

Maria Rodrigues