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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Legitimidade da Rua

A rua é o último reduto da legitimidade democrática; a responsabilidade dos órgãos de soberania está em que ela nunca se torne o único reduto.

É na rua que cai a legitimidade perdida pelos órgãos de soberania quando, por exemplo, excedem ou sofismam o mandato que lhes foi conferido. O eleitorado soberano não passa cheques em branco: toda a eleição representa um contrato e este caduca, total ou parcialmente, se os seus termos - expressos em programas eleitorais, na Constituição, nas tradição democrática, no consenso social - não forem respeitados.

Preservar a sua própria legitimidade é o primeiro dever dos tribunais, dos parlamentos, dos governos. E este dever é tanto mais premente quanto a legitimidade é fácil de perder - não só no termo da duração dos mandatos, por via das derrotas eleitorais, mas na sua vigência, por incumprimento.

As instituições podem perder legitimidade por outros processos, como as transferências de soberania para entidades não sufragadas eleitoralmente. É por isso que as derivas tecnocráticas, pensadas para evitar que o poder caia na rua, acabam, contraproducentemente, por levar a que nela caia a legitimidade.

A esta luz, os acontecimentos recentes na Grécia e, em Portugal, nas instalações do Ministério da Educação ganham uma dimensão que ultrapassa em muito a de meros casos de polícia. E se não são tratadas como tal, é pela má consciência das autoridades, mais conscientes do que ninguém do ponto a que a sua legitimidade está comprometida.

domingo, 25 de setembro de 2011

Alice e Heidi

Comprei a edição de Heidi cuja capa se vê acima numa feira de rua em Berlim. Na página em branco que antecede a de rosto ainda se pode ler:

Dieses Buch möge Dir, liebe Elke, viel Freude bereiten.*
14. April 1948
Mutti u. Vati.

Tinha eu, quando comprei o livro, sessenta anos. A Elke a quem ele foi oferecido pelos pais já sabia ler dois anos antes de eu nascer. Será ainda viva? Se é, andará pelos setenta anos. Como e porquê se desfez do livro? Porque percursos terá ele chegado àquela feira? E em que medida terão estas interrogações da imaginação contribuído para a minha curiosidade em lê-lo? E porquê associá-lo no meu espírito a Alice in Wonderland?

Os dois textos pouco mais têm em comum do que terem por título nomes de  meninas, e parece deslocado justapor ao modesto talento de Joanna Spyri o génio de Lewis Carroll. Mas a sobredita curiosidade, somada ao facto de Alice nunca andar longe do meu espírito, estabeleceu a ponte; e o talento narrativo, ainda que modesto, deve ser reconhecido ao mesmo título que o génio, pelo menos na medida que ambos, seja por um centímetro ou por um ano-luz, estão fora do meu alcance.   
Já as diferenças são muitas: os dois livros não poderiam ser mais opostos se Alice tivesse sido escrito propositadamente como um Anti-Heidi. Se este ensina a ir à escola, aquele ensina, no dizer de André Breton, a fugir à escola. E no entanto ambos nos falam de liberdade.

Liberdade exterior no caso de Heidi, sempre à espera de Maio para se poder descalçar no prado e usar o mínimo possível de roupa; liberdade interior no caso de Alice, sempre impecavelmente fardada no uniforme da sua classe social mas investida duma formidável independência no pensamento e nos sentimentos morais. A virtude de Heidi é a obediência: obedece não só a quem lhe quer bem, mas também à prima Dete, à  governanta dos Sesemann, Fräulein Rottemmeier, à criada Tinette, sarcástica e indiferente. Dotada de iniciativa, como manifesta ao introduzir uma ninhada de gatos em casa dos Sesemann ou em ensinar Peterli a ler, não exerce essa faculdade contra as ordens expressas de qualquer autoridade. Já a virtude de Alice é a desobediência. Se bebe do frasco que diz "bebe-me", é por curiosidade. E é por curiosidade, e sob reserva de julgamento, que segue as instruções que lhe vão surgindo no caminho.

Heidi relaciona-se com os adultos de baixo para cima. Alice, de igual para igual - e até, ao acordar, de superior para inferior: "Who cares for you?" said Alice (she had grown to her full size by this time). "You're nothing but a pack of cards!"

E acordou. Acordados, somos do nosso tamanho. Pensamos criticamente. Perdemos o medo. E sabemos que os senhores e senhoras que nos governam não passam de um baralho de cartas.

* Possa este livro, querida Elke, dar-te muita alegria.